quarta-feira, 12 de julho de 2017

Pede-se a uma criança: Desenha uma flor! (Almada Negreiros)

Pede-se a uma criança: Desenha uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém. Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu. Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais. Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor! Contudo a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!

de Almada Negreirosin "O Regresso ou o Homem Sentado - III parte"

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

O pau

O pau
O pau bate
Forte
Forte e duro
Rasga
Rasga a pele por fora
Fere
Fere o coração por dentro
E dói
Mas mais dói a alma
E mata
Seca a fonte de amor
Mas nasce
Cresce a dor e o ódio

O pau bate
Bate forte
e rasga
e fere
e dói
e mata
Mata amor
Inocência
Mas cria
Cria dor e rancor

O pau sobe
Ele cerra os olhos
O pau desce
Sua voz lamenta
O pau ri
O menino chora
O pau sobe
Última lágrima enfim
O pau desce
Sua face enrubesce
O pau ensina
E do menino surge
O homem crescido que odeia

E o pau bate outra vez
Outra mão o segura
Noutra pele ele investe
Outra alma assassina
E o monstro se recria

A máscara (Maria Cândida Mendonça)

Parei
Espreitei
Entrei
Comprei

Saí
Subi
Abri
Sorri

Peguei
Coloquei
Atei
Ajeitei

Desci
Apareci
Rugi
E ri

Um leão!
Que aflição!

Mas não!
É o João!

O Homem insignificante


Se na hora mais viva e brilhante
Quando Sol a meio do seu arco
Aquecesse a Terra com o seu beijo
Eu perdesse o calor e esfriasse
Numa noite só minha e eterna
Haveria alguém que notasse
A minha estranha ausência?


Se hoje, enfim, morresse
Seria mais um dia no vazio
E os astros milenares não chorariam
Nem haveria eco do meu nome
...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O Girassol (Vinicius de Moraes)

Sempre que o sol 
Pinta de anil 
Todo o céu 
O girassol 
Fica um gentil 
Carrossel.
 
"Roda, roda, roda carrossel 
Gira, gira, gira girassol 
Redondinho como o céu 
Marelinho como o sol."

Tanta Tinta (Cecília Meireles)

Ah! Menina tonta,
toda suja de tinta
mal o sol desponta!

(Sentou-se na ponte,
muito desatenta...
E agora se espanta:
Quem é que a ponte pinta
com tanta tinta?...)

A ponte aponta
e se desaponta.
A tontinha tenta
limpar a tinta,
ponto por ponto
e pinta por pinta...
Ah! A menina tonta!
Não viu a tinta da ponte!


A Arca de Noé (Vinicius de Moraes)

Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata.
O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata.

E abre-se a porta da Arca
De par em par: surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca

Noé, o inventor da uva
E que, por justo e temente
Jeová, clementemente
Salvou da praga da chuva.

Tão verde se alteia a serra
Pelas planuras vizinhas
Que diz Noé: "Boa terra
Para plantar minhas vinhas!"

E sai levando a família
A ver; enquanto, em bonança
Colorida maravilha
Brilha o arco da aliança.

Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante.

E logo após, no buraco
De uma janela, aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece.

Enquanto, entre as altas vigas
Das janelinhas do sótão
Duas girafas amigas
De fora a cabeça botam.

Grita uma arara, e se escuta
De dentro um miado e um zurro
Late um cachorro em disputa
Com um gato, escouceia um burro.

A Arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Aos pulos da bicharada
Toda querendo sair.
Vai! Não vai! Quem vai primeiro?
As aves, por mais espertas
Saem voando ligeiro
Pelas janelas abertas.

Enquanto, em grande atropelo
Junto à porta de saída
Lutam os bichos de pelo
Pela terra prometida.

"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta; e o tigre — "Não!"

Afinal, e não sem custo
Em longa fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais.

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida.

Conduzidos por Noé
Ei-los em terra benquista
Que passam, passam até
Onde a vista não avista

Na serra o arco-íris se esvai . . .
E . . . desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Na terra, e os astros em glória

Enchem o céu de seus caprichos
É doce ouvir na calada
A fala mansa dos bichos
Na terra repovoada.